domingo, 22 de janeiro de 2012

O trem e as histórias na linha do tempo


Mesmo com o aviso do cruzamento os acidentes aconteceiam

Pedestres e veículos dividiam o mesmo espaço
Muitas cidades paulistas nasceram a partir do traçado original da estrada de ferro, que desbravou o sertão e o oeste. Marília foi um delas. Primeiro, os trilhos. Depois, o transporte de passageiros e das boiadas em vagões enormes e comboios extensos. Alguns chegavam a mais de vinte composições. O apito do trem anunciava que ele estava se aproximando da passagem pela cidade e a gente deixava tudo o que estava fazendo, para ficar mais perto da linha férrea que passava bem atrás da Indústria Matarazzo, onde hoje está instalada a Casa Sol Ecologia.
Só de escutar o barulho da máquina, era possível saber se o trem era de passageiros ou de carga. O de passageiros tinha um som mais cadenciado e contínuo. Já o de cargas, hora acelerava o motor para puxar mais, nas inclinações da linha, hora desacelerava para garantir a segurança dos transeuntes e poder frear em caso de emergência, coisa que era difícil devido ao tamanho e peso. No trecho urbano, a linha férrea era separada por mourões de cerca de aroeira e arame farpado, mais até para manter longe os cavalos e outros animais que eram criados soltos nas vilas.
Os garotos mais atrevidos, longe dos olhos dos pais, colocavam enormes pregos nos trilhos para fazer lâminas de canivete ou de faquinhas. Se o limpa trilhos, espécie de pára-choque do trem, colocado na frente da locomotiva e bem próximo à superfície dos trilhos, não retirava o prego da linha, era certo que teríamos uma boa ferramenta em mãos. A arte era tamanha que a gente se escondia com medo do prego amassado atingir alguém da turma, visto que a pesada roda o arremetia com força e velocidade para as laterais. Depois de encontrado, era só ter paciência para afiar as laterais e por o cabo de madeira e uma bainha de couro cru.
Diz o ditado: um olho no gato, outro no peixe. Nos cruzamentos dos trilhos com as ruas, sempre havia, duas porteiras que eram fechadas pelo vigia na passagem do comboio. Estes vigias ficavam numa casinha de madeira, de cor acinzentada e tinham por missão ficar de olho no farol que era acionado pela central, lá na estação principal, entre as ruas Paraná e Nove de Julho. O vermelho era o aviso para fechar a porteira, o verde para abrir, mas nem sempre as coisas saiam como o esperado.
Vez ou outra o trem demorava a passar e um motorista mais apressado teimava em cruzar a via interditada. No dia seguinte, nas rádios e nos jornais aparecia a notícia: mais um motorista morre atropelado pelo trem. E não era só motorista, não. Pedestres também morriam corriqueiramente, tudo por falta de cautela e de paciência.
Vale lembrar que as manobras eram feitas no mesmo trecho mencionado acima. Mudar o trem de uma linha para outra, engatar e desengatar locomotivas dos comboios, trocar vagões de carga por vagões de passageiros, encostar vagões carregados nas plataformas de descarga e de desembarque , tudo era feito durante o expediente comercial e as porteiras ficavam fechadas. Não raro, a demora para as operações passava de hora e meia e não adiantava tentar atravessar o carro por outro caminho, porque fechavam os principais cruzamentos: da Rua Paraná, da Rua nove de Julho, da Rua Bahia e até mesmo o da Rua Antonio Prado, ou seja, a cidade ficava dividida em dois lados, o de cima e o de baixo. Lembro-me do Wilson Matos nos programas radiofônicos da Rádio Clube de Marília, reclamando aos montes e pedindo providências das autoridades constituídas.
Lembro-me das buzinas tocando em vão, assim como me lembro de um transeunte que vendia sorvete num destes carrinhos Capilé. Cansado de esperar, com a ajuda de outra pessoa, ele passou o carrinho por debaixo do trem, no intervalo entre os vagões. Depois foi a vez dele passar; subiu sobre os engates para saltar do outro lado e, quando estava se posicionando, a locomotiva engatou lá na ponta e o tranco o derrubou sobre os trilhos. Foi ali que ele encontrou a morte e a cena do corpo inerte, coberto com jornais, se repetiu por várias vezes ao longo dos anos em que o trem passou pelo centro e pelos bairros. Muitas famílias marilienses perderam entes queridos sob as rodas dos trens, algumas até de forma mais trágica, quando o suicida escolhia se jogar sobre os trilhos, com a vã esperança de colocar fim a um sofrimento de amor não correspondido ou em razão das dívidas acumuladas.
Parece que havia uma poesia mórbida nestes atos, certo encanto sobrenatural que levava os desesperados a ameaçarem seus familiares ou amigos com a frase amedrontadora: “Se continuar assim, qualquer dias destes eu me jogo na linha do trem.”
Mais tarde, bem mais tarde, vieram as cancelas automáticas e os avisos sonoros que tocavam insistentemente. E o leitor mais novo pode me perguntar: e os acidentes e as mortes diminuíram?
Respondo que não, pois a irresponsabilidade e a pressa só aumentaram e, com a ausência dos vigias, a transgressão ficou mais fácil do que antes. E, pode acreditar – se os trens voltarem a passar pelo centro da cidade, as velhas manchetes vão ocupar os principais espaços dos jornais, das rádios e das tevês. Como diria o amigo Cláudio Amaral – e você ainda me pergunta por que, amigo leitor?
Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília.
Publicado também no Jornal Diário de Marília, edição 22.01.12, coluna Raízes.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A busca pelo Marco Zero da cidade


Copia do Google Map sobre a região central da cidade
Na primeira reunião do ano, da Comissão de Registros Históricos de Marília, entre os vários assuntos, foi levantada a questão da localização do Marco Zero da cidade.
Há tempos eu já havia entrado nesta pesquisa por conta da divulgação dos pontos turísticos da cidade. Ouvi dizer que o ponto zero ficava na Praça Saturnino de Brito, bem em frente ao Soldado Constitucionalista, onde deveria haver um marco de cimento com placa de identificação. Procurei feito maluco e não encontrei e quem passou por ali e me viu rastreando o chão naquele dia...não entendeu nada.
Depois, me disseram que era do outro lado da rua, na calçada da prefeitura, em frente ao antigo lago, ou quem sabe, mais próximo do Ipê plantado por Sua Alteza Real, o Príncipe Mikasa. Também procurei e não estava lá.
Ouvi dizer que numa das várias reformas que já ocorreram na praça, a máquina niveladora arrancou o Marco do seu lugar original e o mesmo não foi reinstalado. Será?
Ouvi mais ontem. Alguém comentou que o Marco poderia estar, ou pelo menos ter como local correto, o cruzamento das Ruas Quatro de Abril, com a Rua Nove de Julho, onde também seria o ponto mais alto da cidade em relação ao nível do mar.
Bem, esta segunda questão o Google Earth me ajudou a resolver. O ponto mais alto da cidade fica exatamente na Rua Dom Pedro, onde está construído o primeiro sobrado de tijolos de Marília, conforme conta a nossa historia. O Google aponta 685 metros de altitude neste local.
Com a ajuda dos amigos Leonel pai e Leo filho, percorremos outras áreas do mapa e fomos tirando as dúvidas sobre diferentes pontos e dos espigões da cidade:– Antarctica, 676 mts.; Paço Municipal, 681 mts; Igreja Santo Antonio, 674 mts; Rodoviária, 678 mts; aeroporto, 643 mts; Nove de Julho com Rua Quatro de Abril, 681 mts.
Fomos mais longe até. Com a ajuda das informações contidas no livro “Serviço de Estatística da Prefeitura de Marília”, autoria do prof. Glycerio Povoas, edição de 1947, digitamos as coordenadas de localização do município no Google Map. Encontramos exatamente a localização da Estação Ferroviária de Marília, o que indica, mais uma vez, que todo o desenvolvimento partiu da instalação e da operação da ferrovia.
Mas e o Marco Zero, onde fica? Estou recorrendo a outros pesquisadores e historiadores (Zé Lyrio, Brasa, Joel, Waldir Cesar) para tentar resgatar esta informação histórica, bem como, aos amigos aqui do Face e da lista do Fotoclube de Marília. Informações gerais são bem vindas.
Obrigado.
Ivan Evangelista Jr

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Na apicultura, um mundo de conhecimento e prazer


Manejo correto garante a  segurança


Troca de caixa e desmembramento de colmeia
 Iniciar as atividades na apicultura foi uma das decisões mais felizes que tomei no ano de 2011. A contaminação viral começou na cadeira do barbeiro Lau. Lá, entre uma tesourada e outra – e fazendo o pé do cabelo – o assunto brotava de forma natural e sempre muito cativante.
Através do Lau, vim a conhecer o Dirceu, outro apicultor mariliense, com vasta experiência em abelhas com e sem ferrão. Dirceu nos recebeu em sua residência e nos mostrou as mais de 30 colmeias que mantêm em seu quintal, sendo que para cada delas há uma história interessante, da origem e desenvolvimento das colônias.
A organização interna das colmeias, as rotinas de trabalho, as floradas, os períodos de seca e sua implicação na produção do mel, o desmembramento de colmeias, a captação de enxames de forma natural, a diversidade dos pastos apícolas, o problema do uso de agrotóxicos sem controle, ou proibidos de comercialização, as diversas espécies que podem ser mantidas na área urbana, os grupos sociais que se formam em torno do tema, entre outros, são assuntos que apaixonam e nos remetem ao mundo da sustentabilidade, de forma natural e comprometida.
Nesta semana, em companhia dos dois ilustres personagens acima mencionados, tive o indescritível prazer de abrir as primeiras colmeias que instalei em terreno próximo de mata ciliar, para produção e coleta do saboroso mel silvestre. Manhã nublada, temperatura mais amena e própria para a vestimenta dos macacões que nos protegem das ferroadas, lá fomos nós com todos os apetrechos.
A abertura da colmeia impressiona. Em média, são noventa mil abelhas que habitam a caixa e, para evitar o alvoroço ou a agressividade, utilizamos o fumegador, equipamento que produz fumaça com uso de gravetos e pó de serra. Assim que os jatos de fumaça são direcionados para a entrada da caixa (alvado), as abelhas enchem o abdomen com mel, pois entendem que a fumaça é sinal de perigo para a colmeia.
Com o abdômen cheio, processo instintivo de armazenamento que visa a preservação da espécie em caso de emergência, as ferroadas se tornam mais difíceis, pois necessitam dobrar o corpo para introduzir o ferrão. Assim, a manipulação dos caixilhos de mel pode ser feita com maior segurança e a retirada dos favos ocorre de forma segura e controlada.
Uma imagem que sempre me impressiona é quando retiramos os caixilhos e os colocamos contra o sol para verificar a quantidade de mel armazenada. É uma imagem dourada e simétrica, embalada pelo zumbido coletivo das operárias que chegam do campo, carregadas de pólen ou néctar e não entendem bem o que está acontecendo.
Depois do trabalho executado, a colmeia é fechada e tudo começa a voltar ao normal, iniciando com o retorno ao seu interior das abelhas que se espalharam nas laterais e formaram algumas pelotas para manter o aquecimento.
As ações são coordenadas e o aprendizado é sempre grande quando se pode contar com a experiência de amigos e a constante assistência e orientação da Associação dos Apicultores de Marília, que promove cursos de atualização e encontros de apicultores para troca de experiências.

Ivan Evangelista Jr
Membro da Associação de Apicultores de Marília e Região

domingo, 8 de janeiro de 2012

Água boa era a de poço

Filtro Fiel
Fonte da Empresa Circular de Marília

Fonte da Coopemar

Sr. Antonio, cavador de poços

O costume de beber água de poço ainda leva as pessoas a procurar as fontes


No desbravamento do sertão paulista, os primeiros a tomarem contato com as novas terras foram os exploradores, contratados pelo governo, que promoviam as entradas e faziam os relatórios, baseando-se na hidrografia dos rios para sinalizar os limites e estabelecer os marcos.
Depois das glebas de terras devidamente demarcadas, os comerciantes de terra eram convidados a conhecer a região e dar início à comercialização. Foi assim que, no ano de 1919, surgiu o patrimônio do Alto Cafezal, hoje nossa querida Marília, do trabalho árduo dos pioneiros Antonio Pereira de Souza e José Pereira da Silva, após várias expedições feitas pelos desbravadores, utilizando as vias do Rio Feio e do Rio do Peixe como principais referências.
Adquirido o lote, a próxima preocupação para o comprador era conseguir água de boa qualidade para beber e para as atividades rotineiras das casas. Naquele período, a febre tifóide fazia muitas vítimas. Os rios, com águas escuras e barrentas, eram hospedeiros dos transmissores do malefício e a preocupação com uma fonte de água potável era prioritária.
De posse de um instrumento rústico, mas muito funcional, o furador de poço saía andando pelo terreno e aplicava sua técnica cabocla para encontrar o veio da água. Segurando as extremidades do galho, que tinha a forma de uma forquilha com a ponta mais comprida (forma de Y), de comprimento aproximado entre 40 cm a 50 cm, caminhava pelo terreno apontando o vértice para frente do corpo e para o solo.
Esta técnica utiliza a colaboração da radiestesia para encontrar os grandes veios de água. Em linhas básicas, podemos dizer que um veio subterrâneo de água corrente ou um grande lençol freático emanam energia, que pode ser captada de várias formas. A varinha de amoreira, segurada de forma sutil, quando passava pela superfície ideal para furar o poço, tinha sua ponta atraída para baixo, da mesma forma que um ímã atrai os metais. Isto acontecia em vários pontos da propriedade e, após o mapeamento dos locais e uma avaliação das condições ideais, que levavam também em conta a proximidade do poço com a futura residência, a localização do curral dos animais, as condições do terreno e outros fatores, dava-se início à perfuração.
Estabelecido o centro do poço, com um compasso improvisado com dois pedaços de galho e barbante, marcava-se no solo a circunferência, que tinha em média 1,40 m de diâmetro, o que viria a ser a “boca do poço”. Após atingir a marca de 1,50 m de profundidade, a boca era revestida rusticamente com pedras nas laterais, para garantir que não haveria desmoronamento. Depois, ia se aprofundando, passando pelo saibro, até chegar na pedra, a parte mais difícil da empreitada, pois demandava trabalho duro de ponteiro e marreta para atingir o veio ou o ponto ideal da mina.
Vencidas as dificuldades, a água surgia. Podia ser minando das laterais do barranco profundo, ou brotando em borbulhões do leito rochoso, fato que era sempre comemorado com muita alegria: “água que vem da pedra é água da boa”, diziam os antigos.
Depois, na casa de banho se instalava o chuveiro. Era um balde de latão, com capacidade para 10 litros em média, onde no fundo se adaptava um chuveiro com torneira. Quando dava por volta das três da tarde, a dona da casa punha a água no fogão de lenha para esquentar. A água que era transportada e despejada no balde, que depois era suspenso por uma corda para ficar na altura da cabeça. Ter este equipamento em casa era artigo de luxo, pois, no geral, os banhos eram de canequinha e bacia, isto quando não se aproveitava a mesma água para dar banho em duas ou mais crianças.
Depois que a cidade nasceu, a prática de furar o poço continuou e, com ela, surgiram muitas doenças que custaram a ser descobertas. Geralmente, na frente do terreno se fazia o poço e, nos fundos, as fossas e as conhecidas privadas de buraco. A fossa funciona por sistema de decantação e, por consequência, acabava contaminando o poço ou o lençol freático de uma região inteira. Quanto mais fossas havia em um local de concentração de pessoas e famílias, maiores as chances de se espalharem doenças e epidemias.
Com a chegada do sistema de encanamento dos esgotos e do fornecimento de água tratada e encanada, nos bairros que contavam com estes serviços, os poços foram deixados de lado e as condições de vida melhoraram muito. Mas o costume de se manter as talhas na cozinha continuou por bom tempo. Eram grandes vasos de barro, nos quais se depositava a água tirada do poço para servir no cozimento dos alimentos e para matar a sede. Os filtros com velas vieram bem depois. As talhas eram instaladas estrategicamente no canto da estronca das casas de madeira, geralmente no local em que havia duas janelas e grande circulação de ar. O barro cozido com que eram produzidas, vermelhinho, chegava a transpirar e garantia uma água sempre geladinha e da melhor qualidade possível.
O certo é que quem já bebeu água de poço, tirada na hora, servida na caneca feita com lata reciclada de doce Cica, ou já bebeu água da talha, tomada em cumbuca feita de cabaça cortada ao meio, nunca vai se esquecer.

Publicado também no Jornal Diário de Marília, coluna Raízes, edição de 08.01.2012
Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília