segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A rua Sergipe e o conto das moedas


Contam um causo de que um pesquisador, depois de passar um bom tempo na floresta, onde foi desenvolver um projeto sobre plantas medicinais, ao retornar para a cidade convidou o seu guia, um índio nativo, para vir junto e conhecer as modernidades e a vida urbana. Durante o período em que perambulou pelas matas, aprendeu a se orientar pela posição do sol, pelos ventos, aprendeu sobre a importância das nascentes e da água potável e muito mais sobre as coisas realmente importantes da vida.
E assim que chegaram à cidade começaram a andar pelas ruas. Entusiasmado, o pesquisador foi mostrando os prédios altos, mais altos que as árvores da floresta, as vias lotadas de carros que buzinavam freneticamente e nem sempre respeitavam as faixas para pedestres, as sedes suntuosas dos bancos e as pessoas que lotavam calçadas e espaços públicos. Notou, no entanto, que o amigo índio se tornou mais fechado, pouco conversava e não fazia comentários.
Ao perguntar o que se passava com ele, recebeu como resposta que estava assustado com a cidade e que as pessoas não sabiam viver corretamente neste espaço e sequer paravam para se cumprimentar ou para fazer as refeições. Isto quando não estavam fechadas em seus mundos “internéticos”, com estas maquininhas infernais que carregam invariavelmente nas mãos e nos bolsos. É claro que foi retrucado imediatamente pelo vivente urbano e ouviu que isto era o progresso inevitável e que a tecnologia está presente em quase tudo que fazemos.
- Mas, e a essência da vida?, perguntou o índio. - Como assim? Respondeu o cidadão.
Estavam na Sampaio Vidal, horário de pico. O índio então pediu algumas moedas e, após pegá-las nas mãos, jogou-as para o alto e esperou que caíssem, pedindo ao amigo urbano que prestasse muita atenção. Assim que as moedas bateram na calçada, as pessoas diminuíram o ritmo dos passos e passaram a procurar onde haviam caído. Foi como se um estalo mágico, uma hipnose coletiva as tirasse de suas bolhas.
O índio olhou para o amigo e disse: é sobre isso que eu estou falando. Você acabou de ver que o coração das pessoas está onde os seus principais valores estão.
Esta historinha é para provocar os amigos leitores. No andar pelas ruas da cidade pouco paramos para observar a paisagem, o contexto, os cheiros e cores. Por vezes, dirigimos no modo piloto automático, porque fazemos o mesmo trajeto diariamente, ou nos sentamos nos ônibus com os fones de ouvido até o destino final.
A rua Sergipe
Do alto do seu ponto de encontro com a avenida Vicente Ferreira, bem em frente ao portão do Yara Clube, foi onde comecei a pesquisa para este artigo. Tive a sorte de encontrar na manhã ensolarada o amigo Marcelo Castelassi, gerente de crédito do Santander, morador da rua desde sua infância. No diálogo rápido, ele me contou que seu avô, Adelino Castellassi, foi um dos primeiros moradores do bairro, e também a família Morgante, com morada na esquina da rua São Vicente.
É o último quarteirão que encerra a via com o número 955, destacando as floridas Quaresmeiras e os  Resedás, um branco e outro rosa, entremeados com as Mangubas, que mais parecem patas de elefantes pisando as calçadas.
Foto: Ivan Evangelista Jr
Lá do alto, é possível observar que a Sergipe está alinhada com os fundos do prédio da antiga Caixa Econômica Estadual. Olhando pouco mais à direita da paisagem, destacam-se as duas torres da Basílica de São Bento. Marcelo me contou que a prima dele lhe disse que, quando criança, saía na calçada para olhar as horas na torre do relógio. Contou também que o asfalto demorou para chegar ali,  lá pelos idos de 1970.
Uma quadra mais abaixo, sentido centro, tem-se uma vista que merece nossa parada e admiração. Vê-se dali o espigão nobre da cidade e todas as interferências arquitetônicas que explodem em pontos salteados. Marília não para.
Do lado direito, o prédio do Estudantado São José, instituição mantida pelos irmãos do Sagrado Coração no passado. Atualmente, o prédio compartilha os espaços com a Irmandade, responsável pela formação dos religiosos, a Escola Social do Colégio Cristo Rei e o Centro Social, voltados ao atendimento de alunos das comunidades carentes.
Descendo um pouco mais, encontramos uma casinha de arquitetura antiga, bucólica mesmo, com a varanda ornada por arcos e tendo ao lado a garagem, separada, como foi costume de época. No terreno ao lado direito, um viveiro de mudas, talvez um tímido comércio, quebrando a monotonia do quarteirão com pequenas roseiras e outras flores ornamentais que brilham ao sol da manhã.
Na baixada da via, três casinhas de madeira resistem ao tempo. Nos fundos dos terrenos, outras casas construídas. Vale lembrar que antes da regulamentação pela prefeitura, era possível dividir lotes em duas ou mais partes e construir várias casas. Pouca gente sabe, mas sob estes mesmos terrenos, nas entranhas das galerias, ainda flui o córrego Palmital, que teve sua nascente na baixada da rua 9 de Julho.
Estamos quase chegando na Praça São Bento, mas, antes disso, passamos quase que despercebidos pelo Roupeiro São Vicente de Paulo, outra importante obra dos Vicentinos, organizada em 1934, com a coordenação dos trabalhos pela Sra. Ilze de Almeida Pirajá. Tinha por objetivo atender aos pobres assistidos pela comunidade Vicentina. Em 1938, foi adquirido o  terreno da esquina com a avenida República, sob a presidência de D. Marina Helena Piza de Sampaio Gois, e o prédio inaugurado em 22 de março de 1949. O roupeiro passou a ser denominado Santa Rita de Cássia, em 1936. Na fachada, ainda é possível conferir a plaquinha branca que estampa o nome e a informação de que o prédio é próprio.
No ano de 2008, por decisão do prefeito municipal, a praça cedeu o espaço do coreto para que a via pudesse contar com a ligação no trecho compreendido entre as ruas Nelson Spielman e Pedro de Toledo. Decisão polêmica, baseada na necessidade de permitir o fluxo de veículos e ônibus que partem ou chegam ao terminal rodoviário urbano, com a instalação de mais um bolsão de estacionamento anexo à praça.O que pouca gente sabe é que no ano de 1974, pela Lei 2204, de 18/09, o então prefeito Pedro Sola, incorporou à Praça Da. Maria Isabel, o trecho mencionado da rua Sergipe, medindo 16 metros de largura por 100 de comprimento. Ou seja, a rua já separava a praça da igreja, o que houve depois foi a volta ao estado anterior dos fatos e o alargamento da via.
Ainda na esquina com a Pedro de Toledo, casinha conservada guarda a memória da inesquecível professora Diva de Macedo Marçal, educadora, orientadora educacional exemplar, entre outras inúmeras qualidades, e pessoa que muito contribuiu para a melhoria do ensino em nossa cidade.
Neste ponto de vista da paisagem, é possível fazer um exercício mental e, ao olharmos no sentido do Yara Clube, voltar ao passado e entender que talvez os mesmos ventos inspiradores ainda sopram, ventos que na época de Bento de Abreu e seus seguidores conduziram o destino dos altos da cidade com a construção da Santa Casa, da maternidade e do Educandário Bento de Abreu.
E, para encerrar este encontro, deixo aqui uma pergunta: quando foi a última vez que você sentou-se em um banco da praça e saboreou um saco de pipocas quentinhas, deixando seus pensamentos flutuarem pelas paisagens ao redor? Precisamos tomar cuidado para que os sons das moedas caídas de bolsos alheios não cubram as notas musicais que brotam dos nossos sonhos e corações.
Ivan Evangelista Jr., membro da Comissão de Registros Históricos de Marília
Publicado no Jornal Diário de Marília, edição de 23/02/2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A Rua São Luiz


Tem início na Rua Presidente Vargas, com a casa de nº 16, que ainda conserva traços de época, e termina com o nº 1.699, na esquina das Ruas Dr. Joaquim de Abreu Sampaio Vidal, Av.. Castro Alves e Av. Sampaio Vidal. Mais recentemente, a Rua São Luiz ganhou trecho de calçadão, que lhe deu o título de ser também o "Shopping a céu aberto", obra que transformou o conceito de comércio na cidade.
“Quem te viu, quem te vê”... afirma o ditado popular.
Quem te viu, minha cara Rua São Luiz, foi nada mais nada menos que o renomado fotógrafo John Phillips, protagonista de uma das seções de maior destaque da Revista LIFE, onde produzia o "Ensaio Fotográfico". A revista publicou ensaios que se tornaram parte da história do fotojornalismo mundial e, na edição de 22 de maio de 1939, a reportagem era sobre o Brasil, com a chamada para o título Brasil – Terra de oportunidades para estrangeiros. Marília se fez presente na edição com três fotos: a da Estação Rodoviária, a fachada das Casas Pernambucanas e a fachada do Hotel Osaka, sendo as duas últimas na Rua São Luiz.(confira em: http://veja.abril.com.br/blog/sobre-imagens/fotojornalismo/brasil-terra-de-oportunidade-para-estrangeiros/)
Neste mesmo período, J. Herculano Pires, hoje conhecido e reconhecido escritor e palestrante espírita, já andava por aqui. Foi ele o fundador da União Artística do Interior. Pires mudouse para Marília em 1940, onde adquiriu e dirigiu o jornal Diário Paulista durante seis anos. Em 1943, pela editora Civilização Brasileira, ele publicou a obra Estradas e Ruas. Dentre as poesias contidas no livro, está  “Encruzilhada do Mundo", que retrata fielmente o frenesi comercial da rua São Luiz.
Em homenagem a ele, publicamos texto desta obra e convidamos o leitor a fazer sua análise sobre o ontem e o hoje desta artéria urbana, que pulsa vibrante e atrai compradores de toda a região; e, nas palavras do autor, já profetizava a globalização com incrível sabedoria e sensibilidade: esta rua Babilônica, centopeia de luz, esquina do mundo, em que as raças se encontram, se entendem, se roubam.
O texto é tão grande em sua visão e tão profundo que merece ser apresentado em placa, em homenagem ao seu autor, placa exposta na rua homenageada, em local que todos possam ler e compartilhar esta visão poética.

ENCRUZILHADA DO MUNDO
No balcão de mosaico branco do bar
O japonês e sua mulher batem as xícaras em sua bandeja de folha
Riem alto e conversam na confusão de sua língua
E que barulho na rua!
Carroças carregadas e vazias
Sobem e descem pelo calçamento
Caminhões pesados rodam de um lado e de outro
Três bicicletas se embaralham numa esquina
E uma motocicleta estoura meia hora na porta do bar
Aturdindo meus ouvidos
Rua São Luiz, rua dos japoneses
Tirei o meu sábado para ver esta rua, para sentir esta rua diferente
Rua dos japoneses? Não! Dos baianos também.
(dos sírios, dos caiçaras paulistas que vêm comprar na cidade!)
A “Pernambucana” pintou o prédio de um amarelo tão vivo
Que até dói os olhos da gente!
A “Selaria São José” hasteou na fachada um cavalo de madeira que cavalga no azul, sedento de luz e distâncias
A “Casa Irará”, que evoca a Bahia,
Pôs na soleira da porta,
Entre as vitrinas repletas de calçados e chapéus,
O sorriso brasileiro de João Patrocínio.
Para marcar de vez o domínio nacional
Nesta rua babilônica.
Rua São Luiz, rua comprida que se perde de vista!
Que parece de noite uma enorme centopeia de luz
Que parece de dia uma esquina do mundo, em que as raças se encontram, se entendem, se roubam.
Se ama, se repele.
Rua São Luiz, rua diferente e confusa,
Que assusta, repugna, que revolta,
E que depois conquista num assalto,
O coração da gente!
O meu amigo Schleiar, da “United Press”
Andou por aqui comigo.
E saiu assustado com a rua maluca
Ah! Mas se ele estivesse aqui neste momento ao meu lado
Pra ver a japonesinha de vestido cor-de-rosa, cinco ou seis anos
Uma fita festiva de cabelos pretos
Sobrancelhinhas perfeitas como dois vôos de andorinhas
Brincando na calçada do Okamoto com o negrinho
De olhos vivos, com o “turquinho” de boné de couro,
Com o judeuzinho de olhos azuis como Jesus
- estou certo que ele veria nesta rua
A encruzilhada da fraternidade!
Sim, a encruzilhada do amor, na síntese do Brasil
Essência de todos os mundos e civilizações que
Assusta a nós mesmos, que atemoriza a todos
Mas que segue a sua marcha tranqüila e certa como um rio
Rua São Luiz, um inglês da “Clayton” passou pela calçada
Com o charuto de Churchill na boca.
Um alemão de culote, nariz de espada recortando o vento
Desceu a rua num cavalo fogoso,
E quase aplicou um “blitzrieg” no espanholzinho da bicicleta
Que o chamou logo de besta…
A japonesinha colegial da “Farmácia São Luiz”,
Blusa branca e saia azul,
Cumprimenta o Yamashita numa longa e sorridente curvatura
Três legítimos caiçaras desdentados e magros
Discutem guerra ao meu lado
A polaca opilada, de lenço na cabeça, olhar manso de carneiro
Que ninguém sabe de onde veio,
Uma criancinha no braço e outra pela mão,
Pede esmolas na esquina.
Rua São Luiz… encruzilhada do mundo!
-eu te odiava e você me conquistou!
(Do livro Estradas e Ruas, 1943, J. Herculano Pires)
Ivan Evangelista Jr., membro da Comissão de Registros Históricos de Marília,
Publicado no Jornal Diário de Marília, edição de 16/02/2014

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Avenida Pedro de Toledo

Percorrer as ruas da cidade para pesquisar e depois escrever estes artigos tem sido algo muito gratificante. Podemos dizer que vemos as coisas todos os dias quando estamos envolvidos pela rotina, porém, o olhar é diferente do ver. O olhar invoca mais concentração, mais atenção da nossa parte, e acabamos percebendo mais os detalhes das coisas, da paisagem, das construções. Nos envolvemos com a história.
Foi assim com a rua Pedro de Toledo. Percorri os seus 4 km de extensão, com início na praça Higashi Hiroshima e finalizando na rua 06 de Setembro, a conhecida rua do Tiro de Guerra. Busquei no percurso destacar pontos que pudessem enriquecer um pouco este nosso encontro de domingo, mas não foi nada fácil. Parece que a via  parou no tempo. Mesmo sendo uma das principais, que ajuda a desafogar o trânsito no sentido centro – bairro, não apresenta grandes modificações no paisagismo urbano, salvo alguns escritórios de contabilidade ou de advocacia que já investiram em prédios e fachadas mais modernas.
Uma boa visita foi ao prédio do antigo Grupo Escolar de Marília, o Thomaz Antonio Gonzaga, a primeira escola de Marília, que tem na fachada a inscrição e a data do ano de 1932. Descobri na visita que este prédio é um modelo de preservação da nossa memória, visto que abriga atualmente a Diretoria de Ensino de Marília, órgão que fiscaliza 116 escolas do ensino fundamental e do ensino médio. Duas imponentes figueiras dão as boas-vindas aos visitantes e, nas placas instaladas próximas dos troncos, encontramos a informação de que são espécies preservadas pelo interesse paisagístico, portanto, imunes ao corte por decreto municipal. Em outra placa no jardim frontal encontramos a informação de que foi o Sr. Leonel Ramos de Oliveira, que aos 12 anos de idade plantou o Ficus-Benjamim, em 21 de setembro de 1944.
As salas de aula, no passado cheias de alunos, hoje são ocupadas por espaços administrativos e gente envolvida com as anotações e registros burocráticos da vida escolar. Janelas amplas ajudam na ventilação do prédio e, mesmo com o intenso calor destes dias, a condição ambiente era suportável, ajudada pela altura do pé direito dos cômodos e pelos amplos corredores que deixam a ventilação correr livre. As imensas portas de madeira são originais e, a partir da metade, da parte superior para cima, contam com vidros, pois assim era mais fácil a direção escola acompanhar o desenvolvimento das aulas.
O piso é de assoalho de madeira, bem conservado e limpo. E ainda tem porões. Me fez lembrar das professoras que pediam para os alunos pisarem com cuidado no deslocamento dentro da sala, para evitar o “toc toc” gerado pelo contato dos saltos de sapato com a madeira.
O destaque maior é para a arquitetura histórica da nossa Igreja Matriz de São Bento, que teve a pedra fundamental lançada em 1º de maio de 1929. Foi elevada a Basílica após a criação do Bispado de Marília, em 26 de fevereiro de 1952. Os belos jardins aos seu redor são convidativos para passeios e leituras. É na Basílica que estão guardados os restos mortais de Bento de Abreu Sampaio Vidal e de sua esposa Maria Izabel Sampaio Vidal, homenagem mais do que justa aos grandes benfeitores da nossa cidade. Anote em sua agenda para aproveitar um destes domingos e comparecer à missa das 19 horas, que tem coral e acompanhamento musical de um grande órgão, enchendo as galerias de sons e vozes harmônicas.
Passando pelo prédio de número 993, lembrei que ali foi morada do nosso querido Dirceu Maravilha, radialista esportivo que faz sucesso na capital, mas que já foi a grande estrela do rádio marilense. A casa em questão é do tipo germinada, expressão utilizada para casas que não possuem distanciamento com o vizinho, compartilhando uma das paredes, que serve de divisa. O detalhe legal é que estas residências são separadas por uma parede, mas o telhado não, ou seja, o madeiramento serve às duas residências.
Sobre este assunto, lembro que meu pai comentava sobre os tugúrios, que eram conjuntos de casas de madeira construídas coladas umas nas outras. Dizia ele assim em tom de brincadeira: “Morar nestas casa não é nada fácil, o que você fala de uma lado o vizinho escuta do outro, se brigar com a patroa então, no outro dia o assunto tá na rua”.
Passei pelos fundos do Colégio das Irmãs, onde as quadras fazem divisa com a rua, e segui adiante. Lembrei da residência do delegado Dr. Lourival Luiz Viana, e do antigo empreendimento dos irmãos Daloia, que sempre fizeram pães e quitutes de primeira qualidade e ainda mantinham o forno a lenha, o que dá um toque todo especial na massa, isso sem falar do aroma de pão quente saindo do forno, que invadia a redondeza e servia até de relógio para a vizinhança – olha só o cheiro, tá saindo a fornada das quatro da tarde.
Nesta mesma quadra, outros nomes ilustres já dividiram vizinhança, como o querido Moura, dono no passado da distribuidora de bebidas da rua São Luiz, o saudoso Barretinho, da Banda do Barreto, e o querido alfaiate e voz de ouro João Calandrim, que faleceu tem pouco tempo.
Já nos quarteirões que têm a numeração 1600, encontramos alguns points que são parte do roteiro gastronômico da cidade: o Bar do Nelson e o Bar da família Gradim, servindo costelão na brasa, porções diversas, espetinhos e os inevitáveis torresmos, especialidade da casa. Dias destes descobri que o Nelson está fazendo pescoço de frango frito, uma iguaria – só quem já experimentou sabe o quanto é bom.
Antes de chegar na indústria Marcon, temos mais dois bares que sempre reúnem bons grupos nos finais de tarde, em busca da recuperação de energias e da breja (cerveja) mais gelada.
Uma curiosidade neste trecho é a borracharia que vende sabão caseiro. Já utilizei os serviços de reparos do simpático senhor e acabei comprando o sabão que ele faz. Na receita vai abacate, gordura reciclada, soda etc., e tem o cozimento artesanal no tacho. Quer saber? Limpa bem mais que estes sabões modernos e tem um cheiro bem característico, que marca o lugar onde são guardados.
Depois do supermercado Tauste, já no quarteirão 2600, você poderá observar que até o final da via ainda restam algumas casas de madeira. Vale lembrar aqui da fábrica de moveis e de balaústres para cercas de madeira, depois Serraria Santa Lúcia, do seu Arnaldo Spachi, pouco depois da esquina com a rua Antonio Prado; funcionou até 10 anos passados.  O lado esquerdo da via divide terreno com a antiga linha férrea e os fundos da indústria Nestlé. Neste trecho, o que ajuda na paisagem é a pista para as caminhadas, sempre com bom movimento e algumas primaveras enfeitando a cerca e a academia de ginástica ao ar livre, já quase no final. 
Segundo os registros do historiador Paulo Corrêa de Lara: “O nome inicial desta Avenida era São Paulo. A mudança deste nome se prende à Revolução de 1932, quando era interventor em São Paulo o Embaixador Pedro de Toledo que à mesma se incorporou com dedicação e entusiasmo, sendo exilado para Portugal pelo Governo Ditatorial quando da derrota dos Paulistas. Político brasileiro e advogado formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, foi deputado estadual em 1895, foi Ministro do Brasil em Roma, Madrid e Buenos Ayres. Regressou ao Brasil em 1934 e faleceu no ano de 1935 no Rio de Janeiro. Nasceu em 1860”.

Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília

Contato: evangelista@univem.edu.br
Publicado no Jornal Diário de Marília, edição de 09/02/2014

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Rua Cantanduva

Está localizada no bairro Alto Cafezal, região da antiga rodoviária intermunicipal de Marília, com início na Av. Sampaio Vidal e término na rua Santa Cecília. É uma região que se desenvolveu bem e acredito que o principal motivo seja pelo fato de estar próxima, no passado, de centros produtivos e geradores de empregos, como por exemplo o Matarazzo, a Antarctica, a Fiação Macul, o Zillo, entre outros. Isso garantia um bom salário aos trabalhadores e o consequente investimento em construção de moradias de melhor padrão.
                Antes de escrever este artigo, tive a curiosidade de percorrer a rua em toda a sua extensão e constatei que, pelo menos, umas 25 casas de madeira ainda enfeitam os quarteirões. Mas há muito mais para se ver, como por exemplo, no quarteirão 800, os blocos de cimento, frisados, para dar maior aderência para as rodas das carroças e para os animais não escorregarem, que foram utilizados para calçar a rua. Vale lembrar que a famosa chácara São Carlos ficava bem no final da via.
                A rua Catanduva já foi bem comercial e os pequenos comércios instalados atendiam aos moradores da região e de bairros vizinhos, com o detalhe de que contava com várias famílias de japoneses. Conferi que o antigo prédio do empório Líder, da família Tokumo, ainda está por lá, porém com as portas fechadas. Era uma alegria fazer compras neste local, sempre muito dinâmico. Lembro que o gerente tinha o costume de manter a caneta sempre atrás da orelha direita, de onde passava a mão e conferia em voz alta a lista de compras que seriam entregues nas residências e sítios.
                Logo no início da rua, ainda encontramos registros arquitetônicos da antiga Fiação de Seda Macul, onde trabalhou a senhora Maria de Lourdes Vicentini Jorente, que aos 17 anos já tinha a responsabilidade da gerência de produção. Logo na esquina (década de 70), funcionava o posto Cerejeira, hoje fechado, mas mantém a placa com o nome do estabelecimento, também administrado por família de japoneses.
                No quarteirão onde hoje estão instalados o Sindicato dos Comerciários e o Sindicato Rural, havia duas oficinas, a dos Marques, família de portugueses, e a dos Ferracini, família de italianos. Eram oficinas tipo faz de tudo, de fundição mecânica a reparos em maquinários agrícolas e veículos. Do Sr. Sérgio e do Sr. Mário Ferracini, ainda temos em casa uma mariquinha para coador de café, feita em alumínio fundido. Dos Marques, um dos filhos montou oficina no mesmo bairro e produz equipamentos para suporte logístico. Havia ainda o Sr. Domingos Vani, hoje morador na rua José de Anchieta, proprietário da oficina de tornearia.
                Alguns leitores que tenham melhor referência da região vão se lembrar da tradicional Casa de Tecidos São Jorge, propriedade da família Ayoube (Michel e Fauzer). Dona Floriza, esposa do seu Michel, era avó de um amigo de infância (Jorge) e vez ou outra nos brindava com uma assadeira de quibe assado que tinha acabado de tirar do forno. Nos sentávamos à sombra de uma enorme mangueira que ficava nos fundos do terreno para saborear a iguaria. Este é outro detalhe curioso da época: o comércio geralmente era na frente do terreno, a casa da família fazia fundos com a loja e ainda sobrava área de quintal para plantar frutíferas e hortaliças.
               
No recente passeio, registrei com alegria a boa conservação da Capela de São Vicente, que religiosamente tocava os sinos para anunciar que o horário da missa estava próximo. Era ouvir o sino e as comadres se arrumavam com destino à capela. Lembro da minha querida tia Flora Ferracini, que puxava a fila e ia passando pela casa das amigas e todas seguiam solenemente vestidas com o véu branco rendado sobre os ombros, terço e livrinho da missa nas mãos e mais uma fita vermelha, indicação de ser membro do "Apostolado da Oração do Sagrado Coração de Jesus" ou a fita azul, que era o sinal de ser "Filha de Maria", mais o vestido branco de mangas compridas, complementada pela faixa azul amarrada na cintura, com as pontas descendo até a altura dos joelhos.
                Os Vicentinos homens, entre eles o Sr. Quito (do Bar do Quito) e o Sr. Tenório Dantas, pai do meu querido amigo médico Dr. Dantas, eram os encarregados de atender a parte social. Visitavam as famílias carentes que procuravam auxílio na igreja, quase sempre em busca de alimentos ou donativos em dinheiro para fazer uma comprinha, ou pagar a conta de água ou luz, que vivia atrasada. Dona Flora se derretia toda ao ouvir o desfiar das histórias tristes de vida, já o Sr. Quito não, era mais firme. Quase sempre passava um sermão pela falta de organização ou limpeza na casa visitada, ou, se fosse o caso, orientava a mãe e dava um "puxão de orelhas", carinhoso, sobre a importância do controle de natalidade para evitar o aumento das despesas. Importante registrar que todos sempre foram bem atendidos, como são até hoje, um trabalho social relevante da comunidade com a igreja.
                De Garça a Lucélia, Sr. José Tenório Dantas era o responsável pela organização Vicentina e foi sua esposa, dona Isaura Dantas, quem nos atendeu pelo telefone e nos contou com alegria sobre este trabalho, ajudando a recuperar os detalhes sobre as vestimentas das mulheres
                Para encerrar a pesquisa, passei pelas instalações do antigo Ginásio Industrial "Antonio Devisate", onde hoje estão o Ceprom e a Secretaria de Governo Municipal. A escola teve sua importância no passado, contribuindo para a formação de profissionais nas áreas de marcenaria, mecânica e desenho industrial. Foi nesta visita que conversei com o amigo Jorente, oportunidade em que fiquei sabendo que ali também funcionou uma fiação de seda, com a participação e investimento do imigrante Jorge Kawasaki. A vocação continua e hoje a escola oferece cursos profissionalizantes em parceria com o SENAI, nas áreas de gastronomia e serviços gerais, e está passando por reformas para melhor adequar o atendimento aos alunos.
               
Talvez por ter morado na região, a visita à rua Catanduva me trouxe alegria e sensação de bem estar. Ao registrar as fotos das casas, da igrejinha, do leito da rua, sons e risadas do passado saltavam da memória e preenchiam os espaços com os rostos de amigos de infância, das pipas coloridas enroscadas nos fios, das mulheres regando seus jardins, cheios de margaridas e rosinhas brancas ou de adálias repolhudas. Na brisa suave do vento, o cheiro do feijão, esquentando sobre o fogo baixo do fogão, aguardando seus maridos extenuados da jornada de trabalho. Havia uma sinfonia, harmônica e balsâmica, que tocava todos os dias, quase sempre puxada pelos sinos da capela. Depois, era sentar na varanda, ligar o rádio e aguardar a chamada:"Em Brasília, 19 horas, está começando a sua Voz do Brasil".
               
Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília
Publicado no Jornal Diário de Marília em 02/02/2014

                contato: evangelista@univem.edu.br