segunda-feira, 16 de março de 2015

A Rua Dom Pedro

Vista geral da rua Dom Pedro
Representando o marco de uma fase de ascensão econômica do município, na Rua D. Pedro, nº 87, está o casarão da família Schelini. Faz parte do traçado do antigo loteamento dos Pereirinha, tem seu início na Av. Sampaio Vidal, via que é o marco entre a história do patrimônio Alto Cafezal e das novas terras de Bento de Abreu.
Dona Rosa de Toledo, fotógrafa, membro honorária e madrinha do Fotoclube "Sebastião Carvalho Leme", foi moradora do Edifício Clipper durante muitos anos. Em uma das visitas que lhe fiz ela me contou que da janela do seu apartamento produziu belas fotos da cidade.  


Rosa de Toledo Cesar
Vaidosa por natureza, sempre com o cabelo bem penteado e batom nos lábios, nos finais de tarde, se arrumava toda e se debruçava no peitoril para apreciar o movimento. "Gosto de ver o trânsito, o movimento das pessoas saindo do trabalho e voltando para suas casas. Quando chove, as sombrinhas abertas, deixam as ruas mais coloridas e tudo me inspira a fazer novas fotos. Amo esta cidade", relatou emocionada.
A Rua Dom Pedro começa na Sampaio Vidal e termina na Rua Santa Cecília. Nos últimos quarteirões eu contei umas 6 casas de madeira que resistem ao tempo e às mudanças, casas com jardins e trepadeiras adornando a fachada, com senhoras regando plantas com a mangueira e com aquele ar saudável dos anos passados.
Ao contrário de outras ruas mais antigas, esta já ganhou novas edificações com estilos de modernidade e os imóveis que não foram modificados arquitetonicamente receberam adaptações para abrigar pequenos negócios. A rua é muito movimentada, o fluxo de veículos é intenso, sendo este um dos fatores para a atração dos empreendedores.
Durante a visita para reconhecimento e levantamento de mais dados, uma senhora caminhava acompanhada pela calçada e me despertou a atenção, pela discrição e harmonia da sua vestimenta e pelo fato de contar com o auxílio de uma bengala, de forma muito elegante. Eu estava fotografando nesta quadra um poste de iluminação pública, localizado defronte as residências dos irmãos Virgílio e Roberto Cavallari , poste daqueles mais antigos, confeccionado artesanalmente em ferro, pela razão de ser um dos poucos que restam na cidade.
Ao se aproximar ela me perguntou se estava fotografando para anúncio de venda da casa. Expliquei que não e me apresentei como pesquisador e cronista da Comissão de Registros Históricos de Marília. "Ah, eu leio os seus artigos aos domingos, gosto de rever as fotos e resgatar as histórias, nasci em Marília, meu pai foi o senhor Abrão Pedro Badiz, proprietário de comércio de secos e molhados localizado na esquina da Rua Nove de Julho, com a Rua São Luiz, depois ele vendeu e mudou-se para Rua Barão do Bananal (hoje Cel. Galdino de Almeida), onde montou a Casa Damasco."  
A Sra. Lourdes Badiz mora na Rua Dom Pedro, desde 1977, em casa construída pelo pai. São três imóveis, tinham a mesma configuração arquitetônica, feitos um para cada filho, conforme mandava o costume de época. Dona Lourdes dedicou parte de sua vida ao convento, na comunidade do Sagrado Coração, deixando a vida religiosa para cuidar dos pais. Quando nos encontramos estava retornando da missa, trazia o semblante de felicidade plena.
Das minhas lembranças sobre esta rua resgato o forte cheiro do couro que emanava da loja Selaria São José, esquina com a Rua São Luiz, dos irmãos Wilson e Moacir. Nas grandes portas verdes, desbotadas pelo tempo, eram pendurados os acessórios mais vendidos para o pessoal da roça e do campo, desde arreios para lida com animais, chapéus, cintos e botinas que lustravam ao sol da tarde.
Nas vitrines ficavam expostas as armas de caça, as cartucheiras, cano duplo, paralelo ou remontado, os revolveres das Marcas Rossi e Taurus, os cintos para cartuchos, acessórios para manutenção do armamento, as camisas em padrão xadrez e as calças rancheiras. O movimento era intenso no pedaço, o pessoal vinha da roça para fazer a compra do mês na Casa São Jorge, ficava do outro lado da rua, e já aproveitava para conhecer as novidades da Selaria, para comprar pólvora e chumbo e trazer algum material para reparo. No rádio o anúncio criativo dizia assim: "A cavalo ou a pé Selaria São José".
O casarão permanece altivo no terreno nobre, ganhou dois prédios vizinhos que lhe furtaram a o sol das manhãs e hoje abriga concorrido estacionamento para veículos, um Oasis no meio urbano sufocado pela frota que não para de crescer. Duas jabuticabeiras parecem guardar a memória dos risos e brincadeiras de crianças de outrora.


Ivan Evangelista Jr, é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília
Publicado no Jornal Diário de Marília, em 15/03/2015

segunda-feira, 9 de março de 2015

Semiótica da urbanidade

Pesquisando uma boa definição para o que chamamos de cidade, encontrei esta aqui: “meio geográfico e social caracterizado por uma forte concentração populacional que cria uma rede orgânica de troca de serviços administrativos, comerciais, profissionais, educacionais e culturais”. Pois bem, esta questão da rede orgânica é o que me cativa, que me instiga a escrever e, cada vez mais, a observar e a buscar entender as transformações.  
É nato do ser humano dizer que pertence a um grupo, a uma tribo. Creio que é inerente à necessidade de inclusão social que todos nós carregamos em nosso DNA. Diz a história que ninguém nasceu para viver sozinho; mais cedo, ou mais tarde, a aproximação de outro ser acontece, ainda que a primeira experiência seja com um cachorro ou outro bicho de estimação.
Como organismo, a cidade tem seus tempos e fluxos, ainda que não formalmente estabelecidos, porém, com uma intensidade que parece seguir um roteiro previamente traçado. Outro ponto que estimula estas incursões mentais é ver que o ontem e o hoje convivem em harmonia no mesmo espaço, ainda que muitas vezes de forma disfarçada.
Se há alguma dúvida quanto a isto, é só procurar ver o que está por de trás das grandes telas coloridas que enfeitam as lojas e escritórios. Na maioria dos casos, as fachadas são originais, sendo que muitas guardam letreiros de atividades comerciais que existiram nos primeiros tempos da história. Fiz um tour pelo centro comercial e, neste exercício fotográfico, tirei a linha dos olhos da horizontalidade cotidiana. É impressionante o que se descobre quando desdobramos a visão buscando ângulos diferentes.
Soberano em épocas passadas, o anúncio do tradicional “Café Propheta” pode ser visto na face oeste de prédio histórico na Avenida Sampaio Vidal com a Rua Nove de Julho, disputando espaço e atenção com as modernas operadoras de serviços de telefonia e Internet.  Na mesma Nove de Julho, dirigindo o veículo, ou caminhando, no sentido centro-bairro, uma das boas vistas que temos são as torres e os vitrais da Matriz de Santo Antônio. Mas, com o passar dos anos, entrou um outro elemento geométrico na paisagem, um enorme carretel de linha, o que gerou uma espécie de tela modernista quando se congela a paisagem.
Este exercício fotográfico me proporcionou uma releitura urbana pela semiótica, a ciência geral dos signos que estuda os fenômenos de significação, onde velhas e novas fachadas, letreiros e ornamentos, cortes e recortes, constroem uma via de interpretação visual que transcende à plasticidade dos cenários. 
Um edifício é uma solução urbana que contempla a moradia de várias pessoas, ou de escritórios funcionais, em um conjunto de pequenos ou grandes espaços organizados na forma vertical. Porém, não é errado dizer que ali está uma pilha de pessoas, gente amontoada em cima de gente, separadas por lajes e paredes, fazendo coisas diferentes para pessoas diferentes. 
E isto já me leva a comentar uma outra modernidade esquisita, que é a possibilidade de comprar o espaço aéreo vizinho. Um dos recursos de marketing na venda de torres comerciais ou residenciais é o apelo sensorial e emocional para a “boa vista” que o comprador terá a partir da sua janela ou sacada. Ora, se uma nova construção for erguida e tirar esta “paisagem paradisíaca”, a razão sensorial da compra deixa de existir. Alguns prédios da área central de Marília já perderam parte da vista privilegiada dos vales e itambés, assim como perderam a brisa fresca que acompanha ou anuncia a chuva. Qual o valor tangível, ou o intangível, desta sensação para os habitantes ali empilhados?
Em outro momento, pelo recorte da lente, podemos nos transportar momentaneamente para terras distantes e místicas. A simbologia arquitetônica tem muito disso e, de forma quase que automática, aciona recursos lúdicos mentais que se ancoram em experiências e na memória visual que guardamos de locais visitados.
Em vários pontos da cidade, é possível encontrar sinalização que previne os transeuntes sobre o cruzamento de via férrea. Se o aviso do cruzamento soa estranho na atualidade, pois este tipo de transporte há muito deixou de existir, a placa anexa - “Pare, Olhe e Escute” - é mais atual do que imaginamos ser. Explico o porquê.
Se queremos realmente conhecer o meio em que vivemos, é preciso utilizar os sentidos de que dispomos para captar as informações que jorram aos montes. Para interpretar a cidade, é muito importante saber ouvir os seus sons, saber olhar a sua performance geométrica e assimétrica, saber aspirar e expirar seus aromas e fedores, conhecer e entender seus personagens mais comuns e os anônimos.
É neste sentido que compartilho estas crônicas, as quais me são uma ferramenta de aprendizado constante.  

Publicado no Jornal Diário de Marília em 08/03/2015

segunda-feira, 2 de março de 2015

Rua Paulino da Silva Lavandeira, a “rua do Cocó”

Era quarta-feira de Cinzas. A cidade começava a se preparar para reassumir o expediente a partir das 12 horas. Deixei o carro estacionado no jardim, aproveitando as vagas que estão bem em frente à farmácia São Bento. Dia quente, antes do almoço caiu bem um picolé de fruta. 
Sentei-me em uma daquelas mesinhas, ao lado dos trailers. Na praça tem trailer que faz suco de guaraná natural, tem outro que serve salgadinhos, com destaque para o charutinho de carne moída com ovo picado e bastante cheiro-verde, tem a banca de jornal e ainda tem garapa geladinha.
Praça São Bento
Esse ponto da Rua Nove de Julho foi batizado de Asilo Santa Rosa, pelo colega Rubens Coca Ramos, também faz parte da Comissão de Registros Históricos. É uma brincadeira que ele faz com os amigos, todos na faixa etária da melhor idade, frequentadores assíduos do local, aproveitando a sombra boa, mais a cervejinha gelada.
Feita a localização geográfica, retorno ao causo ocorrido. Foi ali que um senhor moreno , desceu de um veículo e se aproximou da mesa perguntando: - “É aqui que eu encontro o Cocó?” O Gonzaga sapateiro deu atenção ao cidadão e respondeu que o requisitado estava impossibilitado de  bater ponto na roda há algum tempo, em razão de um tratamento de saúde.
- “Mas ele está bem?”, insistiu o estranho. 
- “Sim, não é nada muito sério. Até ontem mesmo estava com a gente por aqui, é só uma questão de tempo e ele volta.”
Eu, ali, de banda, mas de ouvido comprido na conversa alheia e as antenas ligadas.  Alguma coisa me dizia que deste mato ia sair coelho, e dos graúdos.
A conversa continua: - “Eu preciso falar com o Cocó, sou ex-jogador do São Bento, estou passando o Carnaval em Marília e quero agradecer a ele por tudo que fez por mim.” 
Na roda, um japonês, muito falante, encarou o sujeito e perguntou: - “Você é o Amauri?”
- “Isto mesmo. Depois de muitos anos morando em Santos eu aproveitei o feriado para vir dar um abraço de gratidão no Cocó.”
Confesso aos amigos que em matéria de futebol eu sou semianalfabeto. Sabia que era receita de bom caldo, mas não fechava as pontas na conversa.
Trocadas algumas palavras, deram a ele o rumo da casa do personagem solicitado, apontando lá pelas bandas da Praça Athos Fragata, nas  imediações de um supermercado que já foi da família Moura. 
Imaginei que o visitante teria dificuldades para chegar lá, pois o trânsito na região tinha acabado de passar por mudanças. Era a desculpa que eu precisava para meter a colher em cuia alheia, tudo por uma boa história.
 - “Deixa que eu levo vocês até lá”, me intrometi na conversa e já solicitei que me acompanhassem.
Seguindo o rumo das informações, chegamos na Rua Paulino da Silva Lavandeira, quase esquina com a Rua Comendador Abel Augusto Fragata. Perguntamos a um grupo que estava por perto e a resposta foi objetiva. - “É a casa da frente, é só bater e chamar o Cocó”.
Nesta altura dos fatos, o Amauri da Silva já não cabia nas próprias emoções, parecia criança, se pendurou no grande portão e chamou insistente pelo amigo. Ele estava acompanhado da filha, que fez o comentário: - “Ele está eufórico assim desde que saímos de Santos, se não viéssemos aqui hoje seria uma grande decepção.”
Amauri entrega para Pupo Gimenez a lista dos clubes onde jogou 
O portão se abre o reencontro acontece. Ele abraça o velho amigo e quase desaba em lágrimas. Segura o quanto pode, passa a mão sobre os olhos, tenta disfarçar, não consegue. 
 - “Você está lembrado de mim?”, perguntou. 
Ao seu lado estava nada mais, nada menos do que Antonio Pupo Gimenez, o Cocó, treinador de futebol muito conhecido dos marilienses e dos brasileiros. Amauri sacou do bolso uma folha de papel com anotações dos times em que atuou e disse que veio até Marília, primeiro, para agradecer ao treinador pelo incentivo que dele obteve quando mais precisou, ao começar a carreira no São Bento. Segundo, para prestar contas e dizer que havia dado tudo certo e era questão de orgulho prestar esta homenagem. 
De Marília, em 1961, partiu para o Guarani, depois jogou o Campeonato Sul Americano pela CBF, passou pelo Flamengo e por outros times: Futebol Club Porto/Portugal, Santos Futebol Clube, XV de Piracicaba, Bangu e América/RJ, Barons de Ferplex/Washington-DC-USA, Atlas/Guadalajara-México, Puebla/México, até 1976.
Ficamos ali reunidos por uns 30 minutos: Amauri, vestido com a camisa 10 do Santos, eufórico, seu sonho havia se realizado. O Cocó, ou melhor, o Sr. Treinador Pupo Gimenez, uma simpatia de pessoa, da mesma forma estava emocionado, não esperava que a sua quarta-feira de Cinzas lhe reservasse uma surpresa deste tamanho. Passados 54 anos um de seus pupilos vem lhe dizer obrigado pela confiança e apoio. 
São Bento, campeão de 1967
E eu também, que antes pensava que o melhor do dia das Cinzas seria um sorvete de uva na sombra. 
É como dizem: Quem procura sempre acha, se não um prego, uma tacha.

Publicado no Jornal Diário de Marília, edição de 01/03/2015